Centenário de Paulo Freire

O centenário de Paulo Freire: admirado no mundo, também é vilão da extrema direita

Há exatamente 100 anos, em 19 de setembro de 1921, nascia no Recife, em Pernambuco, aquele que se tornaria um dos mais notáveis pesquisadores da história da pedagogia mundial: Paulo Freire. Patrono da educação no Brasil, o educador, pedagogo e filósofo é reconhecido mundialmente, mas no país em que nasceu ainda é alvo de resistência e fake news. Mas a sua importância para o debate educacional é inegável. Paulo Freire é o brasileiro mais homenageado no mundo. Ele tem 29 títulos de Doutor Honoris Causa dado por universidades da Europa e da América, além de vários outros prêmios, como o Educação pela Paz, da Organização das Nações Unidas para a Educação, Ciências e Cultura (Unesco). O educador ainda é o terceiro pensador mais citado do mundo em universidades da área de humanas, de acordo com levantamento da London School of Economics.

Naquela altura, o Brasil tinha mais de 40% da população totalmente analfabeta. A proposta de Paulo Freire era considerar o conhecimento que aquelas pessoas tinham na hora de ensiná-las a ler e escrever. “Ele propõe um método considerado o conhecimento prévio. A gente usava cartilha de crianças para ensinar adultos. E ele diz que adultos têm que ser tratados como adultos. Com esse método ele acaba socializando a educação”, completa o professor.

O trabalho de Paulo Freire, porém, foi interrompido em 1964 pela ditadura militar, que acreditava que o método poderia incentivar revoltas populares. O educador ficou preso por 72 dias e passou 16 anos em exílio, onde continuou a se dedicar a sua obra. Paulo Freire lançou mais de 30 livros. “Nós não podemos confundir o método dele com a obra. Ele foi muito mais do que o método. Ele foi um filósofo da educação. Ele não agrada a todos, mas nem todos os filósofos agradam a todos. Há de se reconhecer que ele foi um revolucionário da educação e por causa desse sucesso ele ficou conhecido internacionalmente”, destaca Ítalo. Segundo o professor da Faculdade de Educação da Universidade de Brasília (UnB) Erlando da Silva Rêses, a filosofia de Paulo Freire é estudada no mundo inteiro e admirada. “Ele primeiro observou a realidade, depois ele escreveu a teoria, que foi a Pedagogia do Oprimido. A importância dele está não só no Brasil, mas no mundo inteiro”, afirma. 

Maurilane de Souza Biccas, professora de História da Educação na Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo (USP), lembra que a obra de Paulo Freire é estudada em todo o mundo como base de pesquisas em educação. “Os livros de Paulo Freire foram publicados em quase todo mundo. A Pedagogia do Oprimido, é a obra mais importante, a terceira mais citada em trabalhos de ciências humanas do mundo, foi traduzida e publicada em mais de 20 idiomas. A produção teórica e a reflexão sobre sua prática como educador e consultor, inspirou e ainda tem inspirado, inúmeras pesquisas acadêmicas e práticas pedagógicas que são realizadas no Brasil e em vários países do mundo”, diz.

Reflexos de Paulo Freire no DF

Inspirada por Paulo Freire, a professora Maria Madalena Tôrres alfabetiza adultos na Ceilândia há mais de 30 anos. Ela lembra que ela conheceu Freire por meio de alguns estudantes da Universidade de Brasília (UnB). O projeto foi, então, levado para uma igreja que não aceitou a ideia porque já naquela época o educador era tachado de “comunista”. Por isso, elas tiveram que esconder os materiais que utilizavam na casa de uma professora e continuar o trabalho sem apoio até a fundação do Centro Educacional Paulo Freire. “A gente faz esse trabalho na comunidade. Vamos atrás das pessoas. Não temos grandes apoios financeiros, é uma escola de educação popular”, explica Maria Madalena. De lá para cá, mais de 16 mil adultos foram alfabetizados.

E o projeto contou com a visita do próprio Paulo Freire. Em 1996, um ano antes da morte dele, ele esteve na Ceilândia e conheceu a iniciativa. “Ele veio para o primeiro fórum que fizemos em que discutimos alfabetização de jovens e adultos. Foi uma animação muito grande”, lembra. Este ano, completou 25 anos da visita dele e o momento foi comemorado com a inauguração de uma placa. “Ele fez presença no DF e tem uma importância  tanto para Universidade de Brasília quanto para Brasília e manter o seu legado vivo é tarefa nossa que queremos ver esse mundo com uma educação libertadora e emancipadora”, completa o professor Erlando. Em 1997, Paulo Freire foi agraciado com o título de cidadão honorário de Brasília. Já em 2011, ele se tornou doutor Honoris Causa Post Mortem da UnB.

Placa foi instalada no Centro de Múltiplas Funções de Ceilândia, o “Quarentão”(foto: arquivo pessoal )
Estavam presentes: representantes do Centro de Educação Paulo Freire de Ceilândia, Coordenação da Regional de Ensino de Ceilândia, Coordenação dos Restaurantes Comunitários do DF e de Ceilândia (antigo quarentão), alfabetizadores, representantes da Diretoria de Educação de Jovens e Adultos de EJA da SEE/DF, representante do Movimento Popular por uma Ceilândia Melhor, representantes da OAB representantes de rádios comunitárias, representantes do Gabinete do deputado Chico vigilante, representante do Sindicato dos Professores do DF, estudantes.(foto: arquivo pessoal )

No entanto, o método do educador nunca foi usado em larga escala pelo país. “O método nunca foi aplicado em nível nacional. Ele nunca foi aceito integralmente”, destaca Ítalo. Apesar disso, o professor  lembra que a influência de Paulo Freire pode ser sentida em várias escolas pelo país. “Os métodos hoje são híbridos, não é adotado um método único e todos têm defeitos. E essa é a beleza de Paulo Freire, ele dizia que era preciso respeitar as características de cada um e aproveitar o conhecimento. Hoje tem muitas escolas que trabalham assim, mas ninguém fala que é Paulo Freire. Ele também dizia que o conhecimento precisa ser contextualizado, o que as escolas também fazem”, afirma.

Segundo Erlando, é muito difícil para as escolas aplicarem algo da filosofia de Paulo Freire pelo rigidez como são construídos os currículos. “Há uma certa dificuldade. A escola tem que seguir um currículo que vem do âmbito nacional, mas vai depender da forma como o professor trabalha esses conteúdos. Se ele ouve as experiências desse aluno. A ideia é manter a visão do estudante ampla, não podar”, explica.

Paulo Freire em palestra na UnB em 1990(foto: arquivo Erlando Reses )
Paulo Freire na Ceilândia em 1996(foto: arquivo Erlando Reses )

Vilão da ultradireita

Apesar de todo o reconhecimento dado ao trabalho de Paulo Freire, ele tem sido uma das personalidades mais atacadas pela direita no Brasil. Tachado de comunista, o educador já foi alvo de críticas até do presidente Jair Bolsonaro. Na campanha para a Presidência, Bolsonaro chegou a dizer que para melhorar a educação seria preciso “expurgar a ideologia de Paulo Freire” das escolas. O ex-ministro da Educação Abraham Weintraub também ameaçou tirar um mural em homenagem ao educador que tem em frente ao MEC. Nessa semana, a Justiça Federal do Rio de Janeiro deferiu liminar que proíbe o governo federal de “praticar qualquer ato institucional atentatório à dignidade intelectual” de Paulo Freire.

Para Ítalo, estes ataques são motivados por dois motivos: o desconhecimento e a natureza libertária da sua filosofia. “Infelizmente algumas camadas da população interpretam errado. Chegam a dizer que Paulo Freire é responsável pelas mazelas da educação. Tem gente que fala mal dele, mas nunca nem leu um livro dele”, lamenta.

O professor destaca que a educação brasileira demorou muito tempo para ter algum incentivo e segue sem investimento adequados até hoje. Isso por si só explica a situação da educação no país e não a filosofia de Paulo Freire. “São 200 anos de história e de políticas públicas inadequadas. A gente só começa a ter alguma coisa a partir da Constituição de 1988. Somente em 2001, o Brasil teve o primeiro Plano Nacional de Educação. O problema da educação atual não é Paulo Freire é a ausência de políticas públicas”, enfatiza.

Isso, porém, segundo Erlando, mostra o quanto Paulo Freire incomoda. “Muita gente levanta o nome dele sem conhece-lo e ai a gente vê o tanto que ele esta inserido no imaginário popular, não só na academia. Ele é atacado por conta das ideias referentes a uma educação não só ligada a leitura e escrita, mas com uma discussão sobre conscientização”, afirma.

Maurilane Biccas reflete que esses ataques só mostram o quanto ele incomoda. “Paulo Freire é valorizado no exterior por que é genial. É rejeitado também por ser genial. Se a pedagogia de Paulo Freire foi considerada “perigosa” pela ditadura militar, sua práxis causou muitas polêmicas, taxada de comunista. Hoje, a pedagogia do Paulo Freire é considerada por alguns também como “esquerdista”, “comunista”, e que influencia negativamente a educação no país. O governo Bolsonaro vê Paulo Freire como o responsável pela má qualidade pelo ensino publico brasileiro. Ele é chamado de “Doutrinador”, o que ele nunca foi, pois em suas obras podem ser conferidas a importância conferida por ele sobre a curiosidade, o estranhamento e o questionamento em relação ao mundo”, esclarece.

Paulo Freire e João Goulart(foto: arquivo Erlando Reses )

A professora Maria Madalena também avalia da mesma forma. “O grande medo é porque a metodologia esclarece e no capitalismo a classe dominante quer ter todos os lucros e gente que estuda é mais esclarecido”, afirma. “Os pobres que criticam Paulo Freire é por puro desconhecimento. Vão sendo levados pelas fakes news. Nos livros dele só tem coisas boas. Diz que educação exige respeito, diálogo, esperança, liberdade, amor, ser contra ele é ser contra tudo isso”, completa.

Os ataques são tantos, que ano passado o Instituto Paulo Freire lançou um livro avaliando essa situação. “Essa desconstrução tem um endereço, um propósito: atacar o que ele defendia que era uma escola democrática, popular, emancipadora. O alvo da campanha contra Paulo Freire não é só ele: o alvo é o direito à educação pública”, afirma Moacir Gadotti, presidente de honra do Instituto Paulo Freire no Prefácio do e-book Paulo Freire em Tempos de Fakes News.

25 anos após a morte de Paulo Freire, o Brasil ainda tem 11 milhões de analfabetos, segundo o IBGE, e a educação ainda enfrenta mais um desafio com a crise provocada pela pandemia. De acordo com relatório Education at a Glance 2021, elaborado pela Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE), e divulgado esta semana, o Brasil é um dos poucos países que não aumentou o investimento em educação durante a pandemia. “Os estudantes da EJA não conseguiram nem participar das aulas remotas. Muitos ficaram desempregados e não tinham acesso a internet. O governo economizou com água e luz, poderia ter revertido em planos de internet e cesta básica, mas não fez. Nós investimos tudo que podíamos em cestas básicas para não ver os nossos passando necessidade”, lamenta Maria Madalena.

Via Correio Braziliense.

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